05/2018

Tempo de leitura: 13 minutos

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Dados científicos relacionados ao uso da terra revelam onde o Brasil precisa focar para combater o desmatamento e aumentar sua produtividade

Foto: Divulgação

Membro da Academia Brasileira de Ciências e do Grupo Estratégico da Coalizão Brasil, o professor Carlos Nobre está à frente de um importante projeto do movimento: ajudar a promover as informações científicas sobre uso da terra em uma economia de baixo carbono.

Para isso, o movimento irá realizar o seminário “Agropecuária e a dinâmica de cobertura e uso da terra: dados científicos e sua aplicação”, em 17 de maio. Nesta entrevista, Carlos Nobre fala sobre a trajetória do Brasil como líder em tecnologias de sensoriamento remoto, suas aplicações e a necessidade do setor agrícola em investir mais em ciência e tecnologia.

Segundo o professor, “os dados não mentem”. Inúmeros estudos científicos indicam que a maior parte da alteração da vegetação brasileira se deu ao arrepio da lei e, por isso, o combate à ilegalidade é uma peça-chave. Por outro lado, os dados revelam que a produção agrícola na Amazônia aumentou durante o principal período de queda no desmatamento (2004 a 2012), comprovando que produção agropecuária não depende da abertura de novas áreas.

Confira a entrevista completa:

Como o uso da terra é monitorado no Brasil?

No final da década de 1960, assim que os primeiros satélites de observação da Terra foram lançados, o Brasil foi um dos países que lideraram as tecnologias de sensoriamento remoto para observar as alterações da vegetação a partir do espaço. Nessa época, o Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (INPE) começou a desenvolver os métodos de utilização de dados sobre as alterações da vegetação e, ao longo do tempo, esse trabalho foi aperfeiçoado, com novas tecnologias e também com a criação de um programa de pós-graduação na década de 1970 (inicialmente, chamado de mestrado em Sensoriamento Remoto e, agora, mestrado e doutorado em Observações da Terra). Essa pós-graduação formou inúmeros profissionais que desenvolveram empresas na área de geoprocessamento. Por isso, o Brasil tem reconhecida capacidade científica e tecnológica na área de dados sobre uso da terra.

Nos últimos anos, houve uma revolução no uso dessas informações. As constelações de satélite de espaço tornaram os dados e suas aplicações muito mais baratos e acessíveis. O Brasil tem buscado acompanhar o desenvolvimento mundial dessa revolução, seguindo tendências como o big data (manipulação de grandes bases de dados) e o data mining (mineração de dados para usos específicos).

Quais são as principais aplicações dessa informação disponível?

A tecnologia de monitoramento é utilizada não apenas para acompanhar mudanças na vegetação, mas também para áreas urbanas, recursos hídricos, desastres naturais etc. Não há praticamente nada na superfície ou na atmosfera que não seja visível e constantemente observado pela constelação de satélites de observação da Terra – somente o oceano bem abaixo da superfície ainda não é visível do espaço.

Os dados possuem inúmeras aplicações para o setor privado (como já mencionado, no caso de empresas de geoprocessamento), mas também são uma ferramenta muito importante para políticas públicas na área de agricultura, meio ambiente, recursos naturais, energia, transportes e infraestrutura, portos e aeroportos etc. Cada vez mais, esses dados são essenciais a qualquer atividade econômica moderna.

Que informações o conjunto de dados que temos hoje revela sobre as mudanças no uso da terra e sua relação com a lei?

No final da década de 1980, com o desenvolvimento do Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES) pelo INPE, o principal objetivo era usar as informações como ferramenta governamental para monitorar a legalidade e licitude do uso da terra na Amazônia, identificando áreas de desmatamento. As taxas de desmatamento da Amazônia se tornaram uma referência e o INPE foi criando produtos mais detalhados, em alta resolução e mais abrangentes para todo o território brasileiro.

Quando olhamos o conjunto de dados, vemos uma enorme alteração na vegetação do Brasil. Além disso, inúmeros estudos científicos indicam que grande parte dessa alteração, nos últimos 30 anos, se deu ao arrepio da lei, ou seja, em desacordo com o marco legal da sua época. Mais do que 65% das atividades de uso da terra, na Amazônia, e cerca de 50%, no Cerrado, não seguem o marco legal brasileiro de alteração da vegetação original. Muitos grupos do setor privado não querem que os dados sejam usados como prova disso, mas os dados não mentem.

Os dados não conseguem apontar culpados, heróis ou vilões. Isso é uma questão da interpretação da informação, para avaliar a efetividade de políticas ou de práticas do setor privado.

Os órgãos de controle, sejam eles ambientais ou não, precisam dessa informação. A legalidade deve ser perseguida tanto pelo ministério da Agricultura, quanto pelo ministério do Meio Ambiente. Ninguém pode ser a favor da ilegalidade. Esses dados foram muito importantes para o Brasil conseguir reduzir tão drasticamente o desmatamento da Amazônia de 27.000 km2, em 2004, para 4.500 km2, em 2012.

Como os dados sobre uso da terra ajudaram o Brasil a reduzir o desmatamento nessa época (2004 a 2012)?

Até 2005, o INPE apresentava anualmente a taxa de desmatamento do bioma floresta da Amazônia. A partir daquele ano, a pedido do ministério do Meio Ambiente, o INPE começou a desenvolver um novo produto, um mapa do desmatamento a cada 10 dias com informações de satélites que proviam informações diariamente sobre a superfície (sensor MODIS dos satélites Terra e Aqua). Os órgãos de fiscalização (Ibama, Polícia Federal, Ministérios Públicos dos estados da Amazônia etc.) passaram a receber diariamente um mapa de áreas que possuíam indicações das imagens de satélites de possíveis áreas em processo de desmatamento. Isso ajudou a deflagrar inúmeras ações contra quadrilhas, porque o órgãos ambientais, ao receber esse mapa, checavam se havia autorização para o desmate e, caso não houvesse, iam à campo. O governo também investiu muito recurso em helicópteros, aviões, inteligência e equipes no campo para combater essas quadrilhas criminosas. Com isso, a pressão sobre o desmatamento reduziu muito e ao longo dos anos fomos atingindo esse resultado.

Foi um período também importante para comprovar o que já suspeitávamos: mesmo com a queda do desmatamento, a produção agropecuária da Amazônia aumentou. Isso mostra que a produção agropecuária não tem, necessariamente, relação com o aumento do desmatamento, mas sim com produtividade. Isso foi muito importante para abandonar a ideia que havia antigamente de que os mercados mundiais demandam mais grãos e carne e o desmatamento para a expansão das áreas de produção, nesse cenário, seria incontrolável.

A informação e os dados sobre uso da terra foram essenciais nesse período e continuam sendo até hoje, com informações ainda mais sofisticadas e em maior quantidade. Não é difícil detectar uma alteração ilegal no solo hoje em dia, mas, se o desmatamento não continuou caindo, é por falta de fiscalização. Com a crise econômica e a redução de recursos no Governo Federal, as equipes de fiscalização reduziram muito e, com isso, o desmatamento voltou a subir nos últimos anos.

Os estudos apontam que mais de 65% do desmatamento na Amazônia é ilegal. Então, se o governo consegue focar em combater a ilegalidade, o desmatamento diminui. Na Amazônia brasileira, já foram desmatados cerca de 800 mil km2 (sendo cerca de 150 mil km2 abandonados e em estágio de crescimento). Isso é mais de duas vezes e meio o tamanho do estado de São Paulo, sendo que a produtividade agrícola da Amazônia é, em média, 30% daquela do estado de São Paulo.

Por isso, o melhor caminho é apostar em uma agricultura com intensificação sustentável, ou seja, produtiva, científica e tecnológica, ao contrário de uma agricultura puramente baseada na expansão da áreas. Esse modelo é o modelo defendido pela Coalizão Brasil.

A Coalizão Brasil irá realizar o seminário “Agropecuária e a dinâmica de cobertura e uso da terra: dados científicos e sua aplicação”, em 17 de maio. Qual é a importância desse debate para o movimento?

O debate que lemos diariamente nos jornais é um debate de opinião, de defesa política entre setores. Mas é importante trazer os dados de uma forma científica. A comunidade científica não é opinativa. Suas informações estão baseadas em centenas de artigos comprovados, debatidos, criticados, discutidos amplamente e publicados em periódicos importantes, nos quais são submetidos à revisão por pares.

É importante também trazer as limitações e as incertezas dos dados, o que pode ou não ser dito a partir deles. O seminário trará a toda comunidade da Coalizão Brasil esse denominador comum. Por exemplo, os dois painéis da manhã vão trazer alguns dos melhores cientistas brasileiros da área, que irão apresentar os padrões espaciais e como eles têm mudado ao longo dos últimos 30 anos. O evento será também uma oportunidade para os membros da Coalizão Brasil tirarem dúvidas e fazerem perguntas. Portanto, esse é um debate que vai ser muito útil a todos os setores que fazem um trabalho sério.

Após o dia do seminário, que terá esse importante papel de criar um denominador comum entre os membros da Coalizão Brasil acerca dos dados relacionados a uso da terra, o que mais o movimento pode fazer para seguir promovendo um bom uso desses dados?

Falta uma apropriação desses dados pelo setor privado. Quem gerou esses dados foi o setor acadêmico e quem utiliza é o setor governamental para fins de controle. O setor agrícola precisa desenvolver mais sua capacidade científica e tecnológica. São raros os grupos agrícolas nacionais que possuem laboratórios de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D). No setor florestal é mais comum, mas, em geral, no agrícola, principalmente, na pecuária é muito raro. Existe a Embrapa, mas precisamos de mais pesquisa e também do investimento do próprio setor privado em conhecimento. Este não é algo que ocorre somente no setor agropecuária nacional. O setor privado brasileiro investe muito pouco em P&D, muito menos do que o que ocorre nos países desenvolvidos, onde a maior parte do conhecimento aplicado e novas tecnologias surgem em laboratórios de P&D do setor privado.

Se o setor agrícola investisse em P&D, ele poderia gerar seus próprios dados para acompanhamento de suas atividades, buscando sempre garantir a legalidade e aumentar a produtividade. Não se trata de contestar os dados que já existem, mas de aumentar a capacidade do setor agrícola de analisar e gerar novos dados. O trabalho do Bernardo Rudorff (diretor executivo da Agrosatélite Geotecnologia Aplicada e participante do Painel 2 do seminário) tem esse objetivo, mas trabalhos como esse ainda precisam ser muito ampliados no país.

Então, uma das coisas que eu gostaria de ver como resultado desse seminário é o setor agrícola abrindo os olhos para o fato de que é preciso investir em ciência e tecnologia, ter equipes de doutores, mestres, cartógrafos e geoprocessadores próprios. É um investimento em geração de conhecimento, em capacitação, num modelo em que os dados irão orientar as atividades empresariais. Gostaria de ver também que temos uma visão nacional de desenvolvimento científico e tecnológico, na qual não basta comprar esses pacotes de informação já prontos do exterior, pois precisamos de autonomia científica. Tudo que iremos mostras no seminário, principalmente nos painéis 1 e 2, foi gerado por equipes brasileiras e será uma excelente mostra da nossa capacidade.

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