10/2020

Tempo de leitura: 21 minutos

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Entrevista: Conhecimento, sociedade mobilizada e vontade política são essenciais para derrubar o desmatamento

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Foto: Lucas Ramos

No dia 15 de setembro, a Coalizão Brasil divulgou uma proposta com seis ações para reduzir o desmatamento de forma rápida e permanente, em especial na Amazônia Legal, que tem apresentado índices alarmantes de derrubada de florestas. O documento foi enviado ao presidente Jair Bolsonaro e ao vice-presidente Hamilton Mourão, além dos ministérios da Agricultura, Meio Ambiente, Economia e Ciência e Tecnologia. As propostas chegaram ainda às mãos de líderes e parlamentares da Câmara e do Senado, ao Parlamento Europeu e embaixadas de países europeus. A proposta teve ampla repercussão na mídia, refletindo a preocupação e a demanda da sociedade por soluções para este desafio.

Um dos principais autores do documento é Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e um dos líderes do Fórum Desmatamento da Coalizão. Nesta entrevista, ele explica a importância dessas ações e os resultados esperados. Segundo Moutinho, conhecimento, demanda social e vontade política fazem com que as soluções aconteçam rapidamente, como já ocorreu no passado, entre 2005 e 2012, quando o desmatamento caiu 80%.

Confira os principais trechos da conversa:

Qual a sua análise sobre a situação do desmatamento e das queimadas no Brasil hoje? Por que temos visto uma tendência de alta nesses números?

Existem vários fatores para isso, dos quais eu selecionaria dois principais. Primeiro, há um nítido enfraquecimento dos órgãos fiscalizadores e, segundo, a ausência de um plano de longo prazo para o combate ao desmatamento. Hoje não temos esse plano estratégico. Um plano que contenha um conjunto de medidas que, combinadas, propiciem a redução do desmatamento e do fogo a ele associado. Algo que possa alimentar políticas públicas para o desenvolvimento sustentável na região, sem desmatamento ilegal e com a floresta em pé, valorizada.

Já houve uma política de longo prazo para a questão do desmatamento e das queimadas, que foi descontinuada?

Pelo que aprendemos como sociedade ao longo dos últimos anos, não era de se esperar um aumento de desmatamento no nível que estamos vendo hoje. Muitos devem se lembrar que entre 2005 e 2012 tivemos uma redução de 80% das taxas de destruição florestal na Amazônia. Nesse mesmo período, houve um aumento significativo na produção de carne e grãos na região. Aprendemos quais são as ações efetivas para a derrubada rápida do desmatamento. Algumas estão no documento que a Coalizão elaborou.

A conclusão é que sabemos como reduzir o desmatamento. Temos todos os elementos, testados, para tanto. E mais: podemos fazer isso de forma rápida, se lançarmos mão desses elementos, como fizemos no passado. Cito aqui três deles: primeiro, a quantidade de informações sendo produzida pela academia e/ou ONGs locais sobre a dinâmica do desmate e do fogo na região é suficiente para a tomada de decisões tecnicamente embasadas; segundo, há um movimento social bastante organizado, e a Coalizão Brasil é parte deste processo, que demanda do poder público uma mudança ou ação urgente e imediata para o fim do desmate. Por fim, para os dois primeiros funcionarem, é preciso vontade política. Esses três pilares – conhecimento, demanda social e vontade política – é que fazem as coisas se moverem rápido, e espero que tenhamos a chance de vê-los combinados em favor do desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Há novas vozes emergindo dessa agenda de enfrentamento ao desmatamento e que podem pressionar nessa direção?

Sim, estamos vivendo um novo momento de reação. É tão alarmante essa retomada do desmatamento e dos incêndios em plena pandemia, que diferentes atores passaram a se manifestar, seja por constrangimento, por necessidade ou por interesse de um determinado setor. O mais interessante é que vemos agora, nacional e internacionalmente, uma movimentação de setores que não vinham se manifestando nos últimos anos de forma direta. Entre eles o bancário, o financeiro e parte dos que compram commodities brasileiras.

Soma-se a isso outra coisa que eu acho fantástica. Vem crescendo, embora de forma atrasada no Brasil, um movimento de jovens reivindicando ações de sustentabilidade e proteção de direitos. Ações puxadas pela Greta Thunberg internacionalmente, ou pelo grupo Engajamundo, no Brasil, representam o sinal de que uma mudança geracional de postura está em curso. E não adianta acharmos que são jovens cooptados por ecologistas radicais. Esses jovens são a mais legítima expressão do que se espera da atual geração de tomadores de decisão. O envolvimento deles nas questões de sustentabilidade é crescente. Toda essa mobilização, somada à situação imposta pela pandemia e à necessidade de olhar o futuro pós-pandemia de uma maneira mais sustentável, cria uma conjuntura que permite, por exemplo, que se façam proposições muito bem embasadas e apoiadas em movimentos concretos, com coerência histórica, como a Coalizão e outros grupos estão fazendo. Essa é uma verdadeira pressão para que se tenha mudança naquele último elemento que citei: o da vontade política. Não estamos lá ainda, mas há mudanças muito explícitas nesse sentido, por exemplo, no Congresso. E no setor privado também. O conjunto de membros ativos da Coalizão, que chega a 250, agora, é prova cabal destas mudanças.

A ação 1 fala em fortalecer a fiscalização e responsabilizar os responsáveis pelos ilícitos. Qual é o peso do papel do Estado no combate ao desmatamento?

O avanço do desmatamento na Amazônia e em outros biomas acontece, em grande parte, pela certeza da impunidade. Por exemplo, há um declínio no número de multas àqueles que cometeram ilícitos ambientais, em especial desmatamento ou queimadas ilegais. Isso em um período em que você consegue embasar essas multas com provas como imagem de satélite ou até o uso de testemunhas em campo. Essa certeza de impunidade realmente impulsiona bastante a degradação ambiental.

Um segundo fator é a ausência do Estado, no sentido cru da palavra. Em muitos lugares na Amazônia, você tem comunidades com alguns milhares de habitantes onde não há escola, posto policial ou de saúde. Quem manda ali não é um representante do poder público. É quase sempre algum envolvido com algo ilegal. Tem muito disso em volta de garimpo ou exploração madeireira, onde a regra é a do senhorio de plantão. O Estado sempre chega quando a parte ambiental já está degradada. Essa é a história da Amazônia. O Estado precisa estar presente antes de a floresta ser derrubada. E isso não tem acontecido historicamente, o que leva, em boa medida, à grilagem e ao desmatamento em terra pública.

Falando em florestas públicas, por que é importante suspender os Cadastros Ambientais Rurais (CARs) nessas áreas e destiná-las à proteção e uso sustentável, conforme sugerido nas ações 2 e 3 do documento?

A Amazônia tem a maior parte da sua extensão coberta por terras da União. Em outras palavras, coberta por um patrimônio público dos brasileiros. Boa parte dessa terra pública está destinada – são Unidades de Conservação, Terras Indígenas, florestas nacionais e assim por diante. Mas há uma outra parte, 50 milhões de hectares, uma área do tamanho da Espanha, de florestas públicas não destinadas. E elas devem ser destinadas pelo poder público, seja ele estadual ou federal, para uma categoria fundiária, como previsto na Lei de Gestão de Florestas Públicas aprovada no Congresso Nacional em 2006. Tal lei diz que elas precisam continuar públicas e na forma de florestas. As categorias podem ser Unidades de Conservação ou áreas de produção madeireira sustentável, por exemplo. Não pode ter terra privada nessas áreas. Mas como o governo ou governos não destinam essas áreas numa velocidade adequada, elas ficam à mercê da grilagem.

Hoje temos 50% do desmatamento concentrados em terras públicas. Cerca de 30% do desmatamento total em 2019 foram em florestas públicas não destinadas. Ou seja, como sugerimos na ação 3 do documento, a simples destinação dessa massa de florestas ou uma parte significativa delas, cumprindo assim o que determina a lei, faria com que o desmatamento caísse vertiginosamente dentro de um ou dois anos.

Isso aconteceu lá atrás, entre 2005 e 2008, quando foram criados 24 milhões de hectares de áreas protegidas, e essa ação do governo derrubou as taxas [de desmatamento]. Se funcionou no passado, certamente funciona hoje. Destinar floresta pública para uso sustentável ou conservação altera a dinâmica da grilagem. O grileiro encara a ocupação de uma área já destinada pelo poder público como um risco adicional e nem sempre está disposto a encarar tal risco. Por isso, destinar essas áreas de florestas públicas é importante.

Nós estimamos em mais de 100 mil os imóveis rurais, declarados no Cadastro Ambiental Rural do governo, que estão sobrepostos a florestas públicas não destinadas. Esses imóveis cobrem uma área de 11 milhões de hectares, que representam cerca de 23% dos 50 milhões de florestas não destinadas que citei anteriormente. Esses cadastros, portanto, são totalmente ilegais. É por isso que sugerimos a ação 2, que propõe suspendê-los. Se isso não for feito, e o CAR for mantido no status que está, a pessoa poderá, por exemplo, tomar dinheiro em banco para financiar desmatamento e ocupar indevidamente uma terra pública.

Além disso, ao destinarmos pelo menos 10 milhões de hectares, se feito de forma expressa, certamente faremos uma redução rápida das taxas de desmate. Exatamente como aconteceu no passado. Se fizemos no passado e deu certo, por que não fazemos novamente, agora? A última ação de destinação de áreas públicas não destinadas, feita ainda no governo Temer, abarcou alguns milhões de hectares. Então, destinar 10 milhões de hectares dentro dos próximos dois, três anos, como estamos sugerindo, é perfeitamente possível.

Com relação à ação 4, qual é o potencial de gerar resultados no combate ao desmatamento por meio do trabalho com o setor financeiro?

Os bancos e acionistas nacionais e internacionais estão extremamente preocupados com a contaminação de suas linhas de crédito pelo desmatamento ilegal na Amazônia. Essa é uma revolução que vai numa direção só, não tem volta. Todo mundo começa a se movimentar para não ter sua imagem colada ao desmatamento ilegal. Restringir crédito a desmatadores ilegais, portanto, resulta numa contribuição para a redução do desmatamento. Sem créditos, grileiros têm mais dificuldades de financiar seus ilícitos. A restrição de crédito já funcionou no passado como ação efetiva de controle da derrubada da floresta, especialmente quando aliada aos embargos a municípios com muito desmatamento ilegal. De um lado, você tem a multa e a punição e, de outro, a restrição do ponto de vista de crédito.

O crédito é importante também quando ele reconhece aqueles que cumprem a lei e, em muitos casos, vão até além dela. Então, a questão do crédito funciona na punição e na premiação. Os bancos, individualmente ou em federações, certamente continuarão emprestando, mas certamente buscarão premiar aqueles que se esforçam para seguir a lei e promover sustentabilidade. Caso contrário, assumirão o risco, cada vez maior, de serem considerados um banco desmatador.

A ação 5 é sobre a importância de dar transparência às autorizações de supressão vegetal. Qual a relevância de a sociedade ter acesso a essas informações?

A sociedade brasileira chegou a um patamar de exigência de transparência que se traduz de duas formas. Uma delas é a busca e a exigência por transparência dos dados do governo, por exemplo, usando recursos como a Lei de Acesso à Informação ou por meio de instituições que ainda operam de maneira transparente, como o Inpe e o IBGE, e alguns entes estaduais na região amazônica. O próprio CAR é um exemplo disso, embora nem todos os seus dados, como os CPFs dos declarantes, sejam públicos. Óbvio que falta muito ainda, mas isso permite que a gente caminhe com alguma luz.

A outra forma que estamos vendo quanto à transparência é aquela promovida pela própria sociedade. Isto é, independentemente do governo. O monitoramento espacial do desmatamento é um exemplo. Sistemas geridos pela sociedade, como o MapBiomas, adicionam uma transparência absurda à questão de como se dá a ocupação do solo no país. Acho que, por mais mazelas que a gente tenha, a sociedade brasileira tem se mostrado muito capaz de não somente exigir, mas também criar seus próprios meios de gerar transparência.

A ação número 6 sugere a suspensão de processos de regularização fundiária para propriedades com desmatamento após 2008, que é o marco do Código Florestal. Sabemos que regularização fundiária é um tema fundamental para o desenvolvimento da Amazônia, mas não considerar esse histórico de desmatamento pode ser problemático. Explique um pouco o papel da regularização e desse cuidado em não confundir essa agenda com o atropelo na questão do desmatamento.

O Brasil tem uma legislação super avançada. Contudo, o que é ilegal hoje pode ser legal amanhã, bastando para isso mudar a legislação. É mais ou menos o que aconteceu com o Código Florestal, ou que pode ainda acontecer com ele se forem aprovados Projetos de Lei que buscam alterar esta importante legislação e que ainda tramitam no Congresso. Apesar das mudanças sofridas pelo Código, a sua implementação plena é crucial para proteger florestas e evitar o desmatamento. Esta implementação, contudo, deve ocorrer sem que, no meio do caminho, queira-se mudar o que foi anteriormente decidido. O Código, como está, traz ideias importantes, como aqueles listadas no seu artigo 41. São incentivos que precisam ser regulamentados e que podem fazer uma grande diferença para quem produz, quer proteger e evitar problemas ambientais graves no futuro. Não podemos mutilar essa legislação, sob o risco de manter expectativas perversas de que é possível continuar desmatando ilegalmente, pois em algum momento no futuro o Código será novamente alterado e será concedida uma anistia para que quem cometeu ilícitos. Mas admito que é difícil segurar ilícitos somente por uma legislação forte. Você precisa de fiscalização, punição exemplar e, também, incentivos econômicos positivos para a valorização da floresta e de quem a usa de modo sustentável ou a protege.

Podemos dizer, então, que a ação 6 significa a implementação do Código Florestal?

Exato. O Código precisa parar de ser alterado constantemente. Isso cria a expectativa que mencionei há pouco. Já passamos por uma ampla discussão dessa lei em 2012. Agora é fazer esforços para implementá-la.

Se a gente fosse adicionar ao documento a perspectiva do longo prazo, para evitar passar em 2021 pela mesma situação que vivemos atualmente, que elementos deveríamos acrescentar?

Tem um ponto fundamental que ainda não exploramos: existe uma desconexão astronômica entre o mundo urbano e o mundo rural. Na Amazônia, a maior parte da população (80%) é urbana. Tem gente que nasceu em Manaus e nunca pisou na floresta, nunca viu a realidade indígena, cabocla ou ribeirinha. Essa desconexão faz com que se crie um imaginário urbano pelo qual aqueles que vivem nas cidades não se sentem relacionados com o que acontece no campo. Ou seja, o desmatamento e o fogo não são vistos como problemas de quem vive na cidade. Consequentemente, não se cria empatia com indígenas, agricultores e populações tradicionais. É preciso, portanto, criar pontes entre esses dois mundos.

A estratégia que estamos tentando usar agora é a seguinte: o que acontece no campo afeta a cidade. A fumaça de queimadas é uma forma explícita de ver isso, pois você liga a qualidade de vida nas áreas urbanas a um problema sério de avanço do desmatamento. As pessoas de centros urbanos estão entendendo como é prejudicial desmatar e colocar fogo na vegetação, pois estão se sentindo sufocadas por um ar poluído. E isto em plena pandemia, que ataca o sistema respiratório.

Também acho importante construir as bases do que estamos chamando de uma cidadania climática, ou seja, como você prepara a legião de jovens, hoje desesperançosos com o futuro do planeta e seu meio ambiente. É preciso investir para que possam ter uma formação cidadã capaz de lidar com o grave problema ambiental representado pelas mudanças climáticas globais nas próximas três décadas. Esses são gargalos que ainda não abordamos e que deveriam estar em uma lista de ações da Coalizão.

Finalmente, eu adicionaria mais um ponto, que é a questão da comunicação. Nunca houve uma necessidade tão grande de comunicação efetiva e bem embasada em fatos verdadeiros. Não preciso lembrar a vocês da profusão que temos de fake news, e de fake news científicas… A questão da comunicação é chave nesse processo. Mas, vemos jornalistas mais especializados em diferentes temas sendo diluídos em outros assuntos ou desaparecendo das redações. Há também o desafio da permanência desse tema no noticiário, que ganha força apenas em momentos de crise.

Temos urgência na implementação das ações propostas, por conta do cenário que vem se agravando há alguns meses. O que a Coalizão espera do governo como reação a essas propostas?

A gente tem uma responsabilidade, como organização da sociedade, de pautar o governo, independentemente de posicionamentos político-partidários ou de ideologias. É preciso contribuir com algo técnico e bem embasado. Só dessa forma acabaremos com o desmatamento ilegal na Amazônia e com muitos outros problemas. Assim, vejo que, como Coalizão e o conjunto de seus membros, estamos agindo de forma cidadã e propondo soluções concretas ao governo. Portanto, espero que o governo reconheça a ação cidadã que estamos executando e a leve em conta nas tomadas de decisão. Espero também que as ações sejam, no mínimo, debatidas. Se serão implementadas, vai depender daquelas três coisas que falei no início – conhecimento, demanda social e vontade política.

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