03/2022

Tempo de leitura: 7 minutos

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“O crime organizado tomou conta do interior da Amazônia”, diz diretora de Ciência do Ipam

Ane Alencar aponta a lógica por trás do aumento de áreas desmatadas nos últimos três anos e os caminhos para contê-lo

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Foto: Divulgação

Mais da metade do desmatamento ilegal na Amazônia tem endereço certo: áreas públicas, ou seja, regiões de floresta que pertencem aos estados ou ao governo federal. E nada menos que 30% do total ocorreu, nos últimos três anos, em florestas públicas não destinadas – aquelas que não receberam, por parte do poder público, uma definição se serão concedidas para uso sustentável de seus recursos ou apenas para conservação.

Essas informações constam no estudo “Destinação de Florestas Públicas – Um meio de combate à grilagem e ao desmatamento ilegal na Amazônia”, realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Outro dado alarmante trazido pela pesquisa é que o desmatamento no bioma aumentou 56,6% nos últimos três anos (de 2019 a 2021), uma média anual de 10 mil km2.

“Um dos aspectos mais importantes apontados pelo estudo é que 83% do desmatamento que ocorre em florestas públicas não destinadas são localizados nas federais”, conta Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam e uma das pesquisadoras, que conta mais sobre os dados obtidos nesta entrevista para o Boletim da Coalizão. 

O artigo sobre a pesquisa foi publicado pelo Projeto Amazônia 2030, uma iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia brasileira, reunindo instituições como a Climate Policy Initiative/PUC-Rio e Imazon, entre outras.

Leia os principais trechos da conversa com Ane Alencar:

Você e outros pesquisadores do Ipam já vêm, há algum tempo, alertando sobre o aumento do desmatamento em florestas públicas não destinadas. O que o estudo traz como novos dados?

O estudo publicado agora traz os dados de notas técnicas que lançamos no início de fevereiro e mostram, por meio de análises dos dados do Projeto de Monitoramento de Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que o desmatamento no bioma Amazônia atingiu um novo patamar nos últimos três anos, com uma média de mais de 10 mil km2 anuais nesse período, um avanço de 56,6% ante aos dados registros de 2016 a 2018. E este aumento casa justamente com o mais recente ciclo eleitoral.

O segundo resultado importante é que 51% do desmatamento ocorreu em terras públicas, principalmente nas florestas públicas não destinadas, e especialmente nas federais. O número é alarmante: 83% do desmatamento em floresta pública não destinada correspondem às federais. E esse percentual vem aumentando quando olhamos para os dados dos últimos seis anos.

O que está por trás desse crescimento?

Na minha visão, houve um desmonte do aparato de responsabilização e fiscalização do desmatamento e da ilegalidade, em geral, na Amazônia. Os órgãos responsáveis por isso, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), a Polícia Federal e as polícias ambientais, essas últimas de responsabilidade dos estados, foram enfraquecidos e posto fim à articulação entre eles. É só lembrar que as últimas grandes operações que apareceram na mídia não tiveram um final feliz para quem as comandou – exoneração foi o destino de quem combateu a ilegalidade.

Isso dá um sinal claro para quem se apropria de forma indevida de terras públicas. É um passe livre. Continue a cometer ilegalidades, pois não haverá repreensão. Você não será punido. Então, na minha opinião, esse é o principal motivo para o aumento. A especulação de terras, conhecida como grilagem, é o modo como se opera para desmatar. A terra é ocupada, o ocupante registra a área no CAR (Cadastro Ambiental Rural), desmata, vende a madeira no mercado ilegal. Já desmatada, a terra é vendida para virar principalmente pasto. Não me espantaria se o dinheiro da venda ilegal de madeira e da grilagem tivesse sido utilizado para fomentar o garimpo ilegal na região. O crime organizado tomou conta do interior da Amazônia e está ligado a tudo isso.

Por que há essas florestas públicas sem destinação? O que elas representam em área?

Muitas florestas públicas ainda não receberam destinação. Na Amazônia, são em torno de 51 milhões de hectares e, no Cerrado, 2 milhões de hectares. São áreas reconhecidamente da União ou dos estados como florestas, sendo mapeadas e cadastradas pelo Serviço Florestal Brasileiro como florestas públicas não destinadas, que ainda não receberam uma determinação por parte dos órgãos públicos. Por exemplo, o Ministério do Meio Ambiente pode definir que certa área se torne uma Unidade de Conservação, ou a Funai, uma Terra Indígena. Mas é preciso que os órgãos invistam em estudos para entender qual o melhor potencial de uso para aquela área. E para isso são necessários recursos e boa vontade política.

Quais são as soluções que o estudo aponta para combater o desmatamento e a grilagem nas florestas públicas não destinadas?

Em primeiro lugar, é preciso um Estado fortalecido que volte a conter, imediatamente, o desmatamento. Precisamos de instituições fortes, articuladas entre si, agindo com base em inteligência para punir os grandes infratores. Isso intimida os pequenos e coloca fim à perpetuação do crime. Mostra que há uma governança forte. Outro ponto importante é ir atrás de quem comprou as terras e, nesse aspecto, grandes empresas do agronegócio podem ajudar, promovendo a rastreabilidade de sua cadeia e reconhecendo aqueles fornecedores ou produtores rurais que não estão em área ilegal. É fundamental que o setor privado desestimule a prática de compra de áreas ilegais, fechando suas portas para o que for produzido nelas. A responsabilização das ilegalidades também é fundamental, assim como apoiar os estados em suas estratégias de gestão ambiental, muito enfraquecidas desde o fim do Fundo Amazônia.

O tema das florestas públicas não destinadas é muito caro à Coalizão Brasil. Em sua opinião, como o movimento pode contribuir com este debate e soluções?

A Coalizão exerce papel fundamental, porque tem, como membros, empresas com uma visão diferenciada, mas que acabam tendo seus negócios prejudicados por concorrentes que ainda têm algum quesito de ilegalidade na cadeia. Nesse sentido, por agregar esses e outros players, o movimento é essencial para a mudança de mentalidade e em exercer pressão junto às diversas instância de governo. Em vários momentos, foram cruciais os posicionamentos da Coalizão por meio de documentos, cartas e pareceres técnicos como instrumentos de pressão.

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