Nº 89
05/2024

Tempo de leitura: 8 minutos

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‘No Cerrado, é preciso separar o que é desmatamento legal e ilegal’, afirma Ane Alencar

Especialista do Ipam e colíder da FT Combate ao Desmatamento da Coalizão explica que é preciso avaliar a qualidade e transparência das licenças para supressão da vegetação nativa em propriedades privadas do bioma 

Foto: Divulgação

O desmatamento no Cerrado ocorre principalmente em imóveis rurais privados, que devem seguir as determinações do Código Florestal com relação à área e limite de vegetação que pode ser suprimida. Porém, o desafio para reduzir o desmatamento que avança no bioma começa justamente por verificar se o imóvel está de fato em terras privadas. A partir disso, é preciso, ainda, entender se há autorização para desmatar e monitorar o que é realizado. 

Para Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e colíder da Força-Tarefa Combate ao Desmatamento da Coalizão Brasil, esses são os principais pontos para começar a entender o desmatamento no Cerrado e criar soluções para reduzir essa atividade. 

“É preciso separar o que é desmatamento legal e o que é ilegal. Há dois importantes pontos a serem analisados. O primeiro é verificar se aqueles imóveis rurais realmente estão regularizados. E o segundo é entender o quanto do desmatamento que ocorre em imóveis privados está sendo licenciado”, afirma ela.

Confira os principais trechos da entrevista. 

Qual é a diferença no combate ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado?

A primeira coisa que salta aos olhos é que o padrão de desmatamento em cada um desses biomas é diferente. Cerca de metade do desmatamento na Amazônia ocorreu em áreas públicas, com destaque para as florestas públicas não destinadas e para as glebas públicas que ainda não têm nenhum tipo de registro. Com isso, as ações de comando e controle vão ser muito mais efetivas no contexto da Amazônia, porque o desmatamento em terras públicas é ilegal. 

No Cerrado, a situação é diferente. As terras públicas representam um percentual bem menor. De florestas públicas não destinadas, estamos falando de 2 milhões de hectares. Grande parte do bioma é ocupado por imóveis rurais ou, pelo menos, há uma indicação disso, porque para parte deles só existe o registro do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Ou seja, achamos que são áreas privadas, mas não sabemos ao certo. 

Mas, partindo do pressuposto que grande parte do desmatamento no Cerrado ocorre em áreas de uso privado, e o que rege essas áreas é o Código Florestal, surge uma questão: essa legislação é mais permissiva com relação à supressão da vegetação nativa nesse bioma do que na Amazônia. Dependendo da localização, pode-se desmatar até 80% da propriedade. Isso muda completamente a forma de combater o desmatamento no Cerrado.

Então, o peso do desmatamento legal permitido no Cerrado é grande? 

Essa é uma camada da questão, a noção de que o desmatamento no Cerrado pode ser legalizável. Precisamos realmente saber o que é desmatamento legal e ilegal. Na minha opinião, e vamos falar disso na Coalizão, é preciso trabalhar nessa perspectiva. Alguns pontos devem ser considerados. 

O primeiro ponto é verificar se aqueles imóveis rurais realmente estão em terras privadas, ou se o CAR está sobreposto a terra pública. Ou seja, é preciso saber se os imóveis estão adequados do ponto de vista da regularização fundiária. 

O segundo ponto é entender o quanto do desmatamento que ocorre em imóveis privados está sendo licenciado. A pessoa pode desmatar até 80% da propriedade, mas se ela não solicitar a licença, o desmatamento é ilegal. 

Outra questão a ser considerada é a qualidade dessas licenças. De que tipo ela é? Por exemplo, se é só uma área, se a licença está em nome da fazenda, se a licença é de 10 anos ou de 5 anos, se essa área desmatada está se sobrepondo a APP (Área de Proteção Permanente) ou a RL (Reserva Legal) previamente registradas. É preciso, portanto, que haja transparência dessas licenças. 

E é claro que precisamos falar dos incentivos positivos para combater o desmatamento. Isso tem a ver com as empresas cumprirem seus compromissos de sustentabilidade e deixarem de comprar produtos oriundos de áreas recém-desmatadas. Mas também com um pacote de incentivos para o não desmatamento que se relacionem com a recuperação de áreas degradadas, adoção de novas práticas produtivas, entre outros. 

Esses são elementos a serem discutidos para que realmente haja avanço na pauta de como reduzir o desmatamento. 

Como está hoje a fiscalização ambiental no Cerrado?

A fiscalização nos imóveis rurais é feita pelos estados, que têm a base de dados sobre licenças para desmatar. Por isso, essa base de dados precisa ser integrada. Assim se saberá qual desmatamento tem que ser fiscalizado. Já o Ibama pode fiscalizar o desmatamento em terras públicas e unidades de conservação. 

Qual papel o agro pode ter na conservação e uso sustentável do Cerrado?

O setor é uma força fundamental, porque grande parte da vegetação nativa do Cerrado está em propriedades rurais. Algumas soluções estão conectadas com os grandes players do agro, mais organizados, como acordos para não adquirirem produtos de áreas desmatadas recentemente, a inserção de práticas como a agricultura regenerativa e o entendimento de que a vegetação nativa presta serviços ecossistêmicos à própria agricultura. 

E como está a situação em pequenas propriedades e de agricultura familiar? 

Essa é uma informação que ainda precisa ser levantada em relação ao Cerrado. Precisamos saber onde essas propriedades estão localizadas para que possamos entender suas dificuldades de compliance ambiental e o que pode ser feito para integrar essas duas escalas de produção numa perspectiva de sustentabilidade e de paisagem produtiva. 

Assim como se fala em ponto de não retorno para Amazônia, existe um ponto de não retorno para o Cerrado?

No caso do Cerrado há pouca pesquisa sobre isso. Não temos como contabilizar se uma área que foi convertida, principalmente para uso que remove muito solo, se recupera. É raro ver áreas convertidas para agricultura serem abandonadas. 

O que existe é uma percepção de que todo esse processo está deixando o Cerrado mais seco. Por conta disso, há mudança no regime do fogo, que é um elemento que faz parte do bioma, mas que, ao ser alterado, traz impactos. Traz consequência inclusive para a produção agropecuária, pois as pessoas precisarão irrigar mais e isso gera mais pressão sobre a água, com vários desdobramentos.

A tragédia com as enchentes no Rio Grande do Sul traz algum ensinamento ou perspectiva para o Cerrado? 

Com certeza. O que temos visto no Rio Grande do Sul são eventos climáticos extremos ficando mais frequentes e intensos, resultado de uma ação antrópica forte. Muito dos impactos são sentidos pela população por conta das ações relacionadas à questão ambiental que tomamos no dia a dia. 

Leis que facilitam o desmatamento das APPs e o desmatamento de áreas de recarga, como os campos de altitude, bem como leis que favorecem o barramento de rios, entre outras propostas, acabam por influenciar o nível de exposição da população e do ambiente a eventos climáticos extremos. 

A mensagem que isso leva para o Cerrado é, justamente, a de que precisamos implementar leis que de fato protejam a vegetação nativa, em uma tentativa de evitar que a desgraça seja maior. E há, ainda, todo o processo de planejamento da ocupação do solo, que se torna mais evidente no caso das áreas urbanas.

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